GAIA 2030, O Futuro da Terra

29/01/2015 18:26

GAIA 2030

Aldefran Melo da Silva

 

PARTE 1 – QUINZE ANOS ANTES DO AMANHÃ

 

PRÓLOGO

NO CÉU COM DIAMANTES

            África, 3.600.000 anos antes de Cristo.

            A natureza é sábia e justa. Talvez implacável e cruel demais aos olhos humanos, mas seus desígnios são inquestionáveis. O predador precisa comer, e para isso a presa deve ser sacrificada, mesmo que o instinto de sobrevivência lhe inunde a alma de pavor.

            Os dois animais travam sua incansável luta para sobrepujar a morte; duas criaturas velozes e hábeis a percorrer, no limite da velocidade, a bela paisagem africana. A presa é um bípede e, apesar de sua destreza, não deve ser páreo para o veloz tigre de dentes de sabre que roça seus calcanhares. O hominídeo sente muito próximo de si o hálito quente da fera, a bocarra do predador salivando em doce antecipação. Com a adrenalina tirando de seu corpo toda a energia possível para torná-lo mais forte e veloz, esse ancestral humano conhecido por Australoptecus Afarensis, salta por cima de uma moita em direção a uma árvore próxima. Mas o felino segue o mesmo curso com precisão, suas garras armadas e direcionadas a centímetros dos pés da vítima em fuga. A trajetória de ataque, calculada com uma matemática instintiva, não deixa margem a erros. A morte da presa parece inevitável. Porém, quando as unhas do tigre arranham a panturrilha do Australoptecus, o chão desaparece abaixo de si.

            A armadilha bem planejada por uma semente inicial de inteligência humana, faz com que o majestoso quadrúpede despenque em uma cova funda. Não natural, não fruto de erosão, mas cavada intencionalmente pelo clã do primata e camuflada com gravetos e mato.

            Mas por que o habilidoso Chefe do Clã não se precipitou no mesmo túmulo?

Porque a salvação encontrava-se acima. Sempre acima! Quando se lançou no pequeno abismo, seus companheiros o ampararam durante o salto. Esta era a diferença crucial entre os primatas e o restante dos animais, a existência de um polegar opositor, que lhes permitiam segurar coisas e construir ferramentas. Ferramentas como lanças, que imediatamente foram atiradas contra o animal encurralado pelo restante do grupo.

Esse extremo sinal de sapiência configurava o aparecimento de uma nova e sofisticada organização social. Os Australoptecus não eram apreciadores de carne, mas o dente de sabre invadira seu território e pagou o preço. Contudo, essa inteligência fascinante poderia se tornar perigosa ao planeta.

O dia passa.

Ao escurecer, todos dormem abrigados nos galhos das árvores. Esse comportamento era necessário para proteger o grupo do ataque da maioria dos predadores. Dizem que aquela sensação de queda que às vezes temos no início do sono, é reflexo evolucionário desta época, quando nossos ancestrais se desequilibravam e caíam do alto da árvore.

A noite segue tranquila, mas em determinado momento, quando a lua encontra-se mais alta no céu, uma voz invade o sono do líder do grupo:

“Chefe do Clã! Acorde! Venha até a mim!”

Embalado por essa voz misteriosa, o primata acorda, levanta-se e desce da árvore, mas seus olhos, apesar de abertos, fixam-se no vazio, como se estivesse em transe.

“Siga a grama, as gavinhas! Caminhe com o vento! Ouça meu canto no ar revolto! Sinta as folhas despencando que tocam sua pele! Permita que os troncos e os galhos sejam seus guias! Que o cheiro das flores lhe mostre o caminho. Venha até meu seio... e abra seu espírito!”

Essas palavras ecoam por uma eternidade na mente de Chefe do Clã e guiam seu percurso através da mata. Ele só volta a si quando um barulho ensurdecedor, vindo de uma clareira, desperta-o abruptamente. Para seu assombro, o chão começa a rachar bem na sua frente e grandes blocos de pedra emergem dali, dispondo-se em forma de círculo. Tal estrutura é muito semelhante a Stonehenge, na Inglaterra, monumento grandioso cuja origem é um dos maiores mistérios da humanidade.

Subitamente, comportando-se como tentáculos, cipós e gavinhas emergem do complexo de monólitos e envolvem braços e pernas de Chefe do clã, arrastando-o para o interior. Mesmo lutando com todas as suas forças, o primata é conduzido ao centro e forçado a deitar em uma pedra disposta de forma horizontal, como em um altar de sacrifício.

Atrás de sua cabeça, tal qual a cabeceira de uma cama, forma-se uma estrutura retangular. Parece uma cerca viva composta por diversas espécies de vegetais com apêndices espiralados em estilo Art Noveau. Os elementos das plantas configuram uma espécie de circuito impresso, como se fosse um engenho moderno feito de vegetais.  As gavinhas comportam-se igual a fios condutores e, movidas por uma força desconhecida, penetram os orifícios da cabeça de Chefe do Clã. Em segundos, fundem-se com seu sistema nervoso tornando-os um só. A voz em sua cabeça agora é mais intensa e inquisidora.

“Nenhum animal ri! Nenhum animal pode contemplar um céu negro salpicado de diamantes! Nenhum animal fita as estrelas! Mas você é diferente: recusa-se a aceitar uma vida de perfeição como fazem as plantas! Recusa-se a seguir o fluxo! Subordina o ecossistema à sua vontade!

Mas eu controlo o vento... escureço os céus!  Eu gero relâmpagos e ergo pedras com o meu poder! Gramíneas se curvam em devoção a mim! Circuitos vivos são gerados em meu seio! Em minha superfície eu crio... sinais!”

Você tem que ser testada, criatura... sondada à exaustão!”

Algo raro aos mamíferos, que dificilmente olham para cima, Chefe do Clã vislumbra um manto negro repleto de estrelas... um céu com diamantes... e depois escuridão total.

 

CAPÍTULO 1

            _ LANÇAR! _ grita o comandante de um grupo de espadachins e arqueiros com vestimentas de combate medievais. No mesmo instante, uma chuva de flechas atinge implacavelmente um exército de criaturas monstruosas, que avançavam em terreno mais baixo e são pegos na emboscada. Algumas criaturas caem mortas, enquanto outras, feridas, recuam para um desfiladeiro escarpado e coberto por neve.

            _ AVANÇAR, GUERREIROS! _ ordena novamente o líder humano, na expectativa de se valer do ataque surpresa. _ As árvores limitam a área de ataque dos arqueiros! Vamos ao corpo a corpo! Dizimem todos!

            Os espadachins e lanceiros descem a montanha bradando um grito de guerra, enquanto o líder das criaturas, posicionado mais no alto, exibe um curioso sorriso de satisfação. Seu olhar ainda conserva traços humanos, mas através dele, percebemos o caráter maligno de sua alma. Fisicamente todas as criaturas apresentam os rostos descarnados como zumbis, as órbitas dos olhos sem pálpebras e pele do corpo cadavérica. Até seus andares são como de mortos vivos. Mas não estão ali para tombar em combate. Vieram à carga para matar e muitos manejam armas poderosas para a época, como maças e lanças. O exército macabro se move como uma massa única autoprotegendo-se, cercando e golpeando os humanos com uma destreza incrível, enquanto o líder parece ser o único que apresenta individualidade.

_ Os humanos não souberam aproveitar os arqueiros! _ exclama o líder das criaturas do topo do penhasco. _ Desçam e acabem com eles!

Duas massas de criaturas descem pelos flancos e encurralam o exército humano, piorando ainda mais a situação. A batalha começa a pender para o lado do mal. Instintivamente os arqueiros lançam nova saraivada de flechas, diminuindo o número de criaturas. Infelizmente essa estratégia também fere os próprios espadachins.

            Arqueiros! Estão atingindo os nossos! _ brada o comandante humano. _ RECUAR!

Os homens obedecem à ordem prontamente e recuam. Mas ao darem as costas para o inimigo, muitos são atingidos pelas lanças certeiras das criaturas.

_ RECUAR! RECUAR! RECUAR!

Nisso, novas criaturas, ainda mais rápidas e robustas, entram no campo de batalha.

_ Meu Deus! GIGANTES!

Esta nova horda de soldados macabros medem aproximadamente três metros de altura, possuem protuberâncias na testa e se valem de pesadas clavas como armas. A passos largos, alcançam rapidamente os guerreiros humanos e os estraçalham. Os escudos não resistem a seus golpes. Um lanceiro ainda consegue atingir o olho de um gigante, mas isso só o deixa mais furioso. A branca neve torna-se rubra, coberta por sangue humano e membros estraçalhados.

Os remanescentes continuam a fugir. Liderados pelo seu comandante, tentam retomar a segurança através do caminho por onde vieram.

_ Recuar para o desfiladeiro Norte!, _ orienta o líder humano. _ Vamos nos...

Neste momento sua fala e imagem sofrem um tipo de distorção, como um frame faltando em um filme.

_ ...à primeira divisão! _ finalmente conclui a frase.

Mesmo ao longe, o líder das criaturas percebe esse ocorrido e exibe um novo sorriso. “Vamos nos juntar à primeira divisão, foi o que ele tentou dizer!”, pensa a criatura. E faz um gesto como se conjurasse magia.

Enquanto isso, o comandante conduz seus guerreiros para outro desfiladeiro, ordenando aos lanceiros e arqueiros que se dividam e escalem os dois lados da montanha, enquanto ele segue em frente com o grupo de espadachins.

_ Não desistam! _ ele grita para motivar os homens. _ O reforço está logo adiante!

O grupo usa o limite de suas forças para seguir em frente e sabendo que após a próxima curva encontrarão a salvação. Porém, horror.

_ Meu Deus! Não há saída! _ grita um dos homens.

_ É verdade!_ grita outro. _ A passagem foi bloqueada por um paredão de gelo.

Ao mesmo tempo, parte das criaturas que escalaram os paredões atrás dos arqueiros e lanceiros, voltam seus olhares para baixo, para o grupo de homens encurralados. O resto é só morte e desespero. Um a um, o comandante vê seus homens serem trespassados por lanças agudas e tombarem mortos no chão. Tudo é dor. Tudo é vermelho, até o momento em que também é perfurado por várias lanças, num ataque concentrado nele, o último sobrevivente. Então o universo fica escuro.

A imagem do comandante se fragmenta em miríades de zeros e uns, até que a tela do mentalgame se torna preta.

 

CAPÍTULO 2

 

_ CACETE! _ grita Édipo, caindo violentamente da cadeira de realidade virtual.

Assustado, desconecta seus óculos de imersão digital, enquanto seu pai levanta-se calmamente de outra cadeira do mesmo aparelho. O mentalgame é comum no ano de 2015. Esta máquina de última geração de entretenimento permite entrar no jogo como se fosse uma experiência real. Quanto mais sensores há na roupa de interface, maior é a resolução de imagem e sensações. E é possível jogar em modo multiplayer com pessoas de qualquer lugar do mundo.

_ Droga, pai! Como fez isso?! _ pergunta Édipo.

_ “Isso” o que?!, _ indaga Lúcio. Sua expressão é de cinismo.

_ Como manipulou o cenário? A magia está desabilitada, não está?

Lúcio permanece em silêncio por alguns instantes, observando seu único filho. Seu desejo é que o garoto possa raciocinar por conta própria.

_Vamos, pai! Responde! _ insiste o menino.

_Tudo é representado por códigos, _ Lúcio continua finalmente. _ O próprio Galileu Galilei afirmou que o livro da vida está representado por códigos matemáticos!

_Sei! Sei! Mas como conseguiu decodificar o programa?

_ Já disse!  A matemática, filho! A matemática! Eu estudei tanto, treinei tanto minha mente que consigo decifrar padrões a partir de poucas observações!

_ Probabilidades?!

_ Sim! Probabilidades! Dá a mão aqui!

Lúcio ajuda seu filho a se levantar. Em seguida o coloca em seu colo a fim de lhe explicar como o derrotou na batalha virtual de exércitos de fantasia.

_ Em certo momento do jogo, quando seu comandante humano ordenou a retirada para o desfiladeiro norte, observei uma falha na imagem e na voz. Ela pulou um frame. Naquele momento eu inseri um código.

_ Como você... _ indaga Édipo, sendo logo interrompido.

_ Como descobri que código utilizar... _ completa Lúcio. _ é complexo, técnico demais para explicar agora. Por isso, estude! Estude muita matemática! Ela e a cibernética são o futuro da humanidade!

_ E o futuro começa agora! _ exclama uma bela voz de mulher, que ecoa pelo amplo salão de jogos.

_Ela chegou! _ pensa Édipo. _ Um paraíso de curvas em meio à arquitetura retilínea... minha mãe! Estragando tudo ao falar!

_ Está na hora de ir para a escola, garoto!

_ Ah, mãe! _ exclama Édipo contrariado!

_ Por que esse desânimo? _ pergunta Lúcio. _ Suas aulas são semipresenciais! Na minha época tinha que ir à escola todos os dias!

_ Adianta discutir?!_ pergunta Édipo olhando fixamente para seu pai.

Lúcio nada fala, mas sua expressão diz tudo.

_ Tá bom! _ resmunga Édipo ao mesmo tempo em que tira sua roupa de interface e sai do salão de jogos a contragosto.

Enquanto isso, a bela mulher arruma os pequenos cubos flutuantes na mesa de bilhar quadrático. Em 2015, o bilhar clássico saiu de moda. A onda é jogar com cubos em lugar de esferas. Isso foi possível devido ao barateamento de materiais supercondutores. Os cubos flutuam a milímetros da superfície da mesa, suspensos por um campo magnético, ao passo que as caçapas exercem força atrativa. Os efeitos de impacto entre os cubos imantados também geram um espetáculo à parte, mas requer muita destreza do jogador... ou jogadora.

A linda mulher em trajes sumários chama-se Dafne, mesmo nome da mortal que enfeitiçou o deus Apolo com sua beleza. Uma camisola diáfana cobre seu corpo, deixando transparecer levemente sutiã e calcinha. Porém, quando se debruça sobre a mesa, alongando-se para colocar o último cubo no lado oposto, torna-se ainda mais sensual e tentadora.

_ Estou disposta a realizar todos os seus sonhos hoje, amor! ­_ diz Dafne, voltando seu olhar lânguido para Lúcio.

_ Meu sonho é correr nu sob a chuva! _ responde o marido, como se fitasse o vazio.

Quando criança, Lúcio estudou em escola pública e, por seu comportamento, chegou a ser confundido com autista. Ficava horas e horas olhando o vazio e tinha dificuldades em socializar-se. Contudo, com o tempo, o sistema de inclusão permitiu que estudasse em turmas regulares. Foi quando começou a demonstrar uma genialidade incrível para os cálculos. Formou-se ainda adolescente e aos dezessete já lecionava matemática na UFRJ.

_ Que sonho mais besta! _ responde Dafne ao comentário de Lúcio.

_ Na verdade, não é um sonho. É mais como uma possibilidade matemática!

_ Matar quatro cubos em uma só tacada também seria uma possibilidade matemática?! _ indaga Dafne enquanto maneja o taco com maestria. Ela fita o centro da mesa, depois o cubo que receberá o impacto. Lúcio a observa sem paixão, alegria ou tristeza. Enquanto ela se concentra, ele enche um copo com uísque e bebe um gole.

A mulher continua seu ritual e, após respirar profunda e tranquilamente por algumas vezes, desfere uma tacada violenta no cubo mais próximo. O objeto acelera vertiginosamente e, após resvalar no cubo mais distante e no outro lado da mesa, gera uma série de colisões que acabam por encaçapar quatro cubos seguidos.

_ A matemática do caos deve explicar isto! _ declara Lúcio ao constatar o resultado espantoso. Então sorve mais uísque.

_ Fazer amor comigo também seria uma possibilidade matemática?

_ Sim! Desde que seja na realidade virtual!

_ Meu Deus! _ reclama Dafne. _ Por que usar o computador, se eu estou aqui?!

_ Preciso exercitar minha mente! _ exclama Lúcio eufórico, enquanto engole o restante do uísque. _ Vamos! Ponha os óculos e a vestimenta de interface!

_ Tá! _ Dafne concorda. _ Mas eu vou escolher seu personagem!

_ Fechado! E eu escolho o seu! Computador... selecionar avatar número 237!

_ Avatar 590 para meu companheiro!

As duas mentes se mesclam à máquina e ao ambiente que o programa representa. O cenário é de um motel luxuoso com luzes âmbar e lençóis de cetim vermelho. Dafne está ainda mais desejável em seu avatar de estudante normalista. Uma camisa de tergal fino e manga comprida envolvem tenuamente seus seios voluptuosos; a saia azul marinho, curta e de pregas, mal cobre suas ancas; e seus cabelos amarrados, em forma de Maria Chiquinha, formam um contraste de inocência e malícia.

Além da luz realçar as formas de sua esposa, o local, repleto de espelhos, permite a Lúcio enxergar a si próprio. E, espantado ao ver o avatar que ela lhe impôs, berra indignado: _ Ah! Pelo amor de Deus!

Ele veste uma calça apertada de couro preto, um colete de vinil igualmente preto, e um quepe incrustado de brilhantes. Em sua mão, encontra-se um chicote de três pontas, do tipo que foi usado pra açoitar Jesus Cristo. Ao fitá-la, percebe que ela exclama uma frase, aumentado o volume a cada repetição. Finalmente, não resistindo aos seus encantos e senso de humor, ele abre um largo sorriso.

_ Puna-me! Puna-me! Sou uma garota malvada! _ ela repete ainda mais uma vez.

 

CAPÍTULO 3

            África, 2015 depois de Cristo.

            Da beira do arranha-céu onde se encontrava, Joshua II contemplava a devastação na qual o berço da humanidade estava mergulhado. Mesmo à noite, vislumbrava um ou outro foco de incêndio, sinal de angústia e destruição. Visão caótica, mas necessária. Aqueles que ansiavam por liberdade eram obrigados a derramar sangue e ter seu sangue derramado. Joshua contemplou o abismo abaixo de si depressivamente, mas com uma ponta de exultação. Olhando para o vão onde se equilibrava, podia ver suas pernas na beirada do prédio. Tinha longas pernas... pernas verdadeiras. Ao contrário da maioria da população, que era obrigada a implantar membros biônicos.

            Esses infelizes haviam sido vítimas da arma mais covarde que o Homem já inventou, depois dos gases tóxicos e da bomba atômica... as minas explosivas! Era muito comum ver pela paisagem, mulheres, crianças e velhos mutilados pelos malditos fragmentos. Aqueles que desejavam continuar lutando eram agraciados com as próteses, muito avançadas, porém completamente inadequadas. Os membros eram conjugados a armas. A dor e aqueles equipamentos bélicos agregados a seus corpos acabavam por aniquilar toda a humanidade das pessoas, tornando-as guerreiros assassinos e frios, totalmente destituídos de piedade.

            Joshua, ao contrário, tinha o corpo perfeito, à exceção de algumas cicatrizes adquiridas em combate. Um negro alto, musculoso, de corpo malhado no calor da batalha, possuía ainda uma beleza de rosto impressionante. Do tipo cobiçada por fotógrafos daquelas revistas de estética afro. Mas sua convicção de guerrear por uma causa, também não o deixava atrás em relação a atos impiedosos.

            _ Este é o lugar ideal! _ pensou Joshua, enquanto o vento acariciava seus longos cabelos rastafári. _ Eu o chamo de forja de guerreiros! Aqui só há lugar para a dor! Mas não suporto só olhar! Tenho que entrar no olho do furacão! Juntar-me ao povo nesta sangrenta guerra civil contra o Governo é meu treinamento! Creio que isto ajudará a concretizar meu destino! Pois o planeta implora por vingança!

            O guerreiro de ébano estava muito bem equipado. Usava uniforme padrão dos ecoguerrilheiros: coturnos com solas altamente amortecedoras de impacto, roupa autocamuflável, cinto de vários compartimentos e o comunicador. Este consistia em um headset para falar e ouvir, e uma lente acoplada no lado direito. Além de mostrar diretamente na retina com quem o usuário estava conversando, a lente tinha função de mira, GPS, telescópio, visão noturna e realidade ampliada.

            _ Meu corpo clama por exercícios! _ pensou finalmente Joshua e, tal qual uma pantera negra a dar o bote, preparou-se para saltar dali. Neste momento, seu comunicador soou e ele se deteve por mais alguns instantes.

            _ Fale! _ exclamou num tom de frieza mesclada à irritação.

            _ A venda foi confirmada, senhor! Disse Rafael do outro lado da linha. _ Precisa voltar imediatamente! Estamos todos a postos!

            _ Não se preocupe! _ respondeu Joshua expressando agora um leve sorriso de satisfação. _ Voltarei ao Brasil o mais rápido possível... antes que possa trocar de namorada, seu mulherengo!

            Parece que a guerra civil teria de esperar.

 

CAPÍTULO 4

PROPAGANDA:

            Sonhos eróticos? Complexo de Édipo? Complexo de Jocasta? Não consegue largar o charuto?

            Adquira agora mesmo seu TECNOFREUD, o holograma psiquiatra particular. Para mais realismo, adquira também o kit consultório, com sala na penumbra e divã. Basta fazer o download. Caso não tenha o projetor, mande-nos um h-mail e o enviaremos imediatamente à sua residência.

            _ Sanidade garantida ou seu dinheiro eletrônico de volta! _ Exclama o holograma de Freud na tela do outdoor de Led.

 

REPORTAGEM:

            _ Tumulto e protestos na madrugada de ontem, quando foi aprovado o decreto que cederá a área da Floresta amazônica aos EUA pela anistia da dívida externa! _ declara a repórter da Rede Zigurate. _ O Presidente do Brasil apresentou sua justificativa.

            _ Os EUA tem nos ajudado muito ultimamente, compartilhando tecnologias e auxiliando na vigilância do território amazônico! A anistia da dívida proporcionará ao nosso país um crescimento econômico e desenvolvimento tecnológico como nunca aconteceu antes!

Comentário de um intelectual:

            “É um absurdo que em pleno século XXI o Brasil ainda não tenha adquirido consciência do potencial econômico que a floresta tem a nos oferecer!”

 

Comentário de uma operadora de Webmarketing:

            “Sem anistia da dívida, nós vamos estar indo para o buraco!”

 

Comentário de um judeu:

            “Acho que foi bom negócio! O floresta já era de norte-americano mesmo!”

 

 

Repórter da Rede Zigurate:

            “Sim! Desde que a Amazônia foi declarada ‘Área de Esperança Internacional contra a Intolerância’ pela UNESCO em 2003, a biopirataria corre solta... digo, tem se intensificado!”

 

Comentário de um adolescente usando boné de aba para trás, ouvindo funk:

            “Num tô nem aí! Num moro lá mermo! Que se danem os tubarões do rio amazonas! Como?! No rio amazonas não tem tubarão?!”

 

REPORTAGEM:

            “Carregamento de batom foi roubado esta noite em Manaus!”

 

CAPÍTULO 5

            O Rio de Janeiro não continua lindo! A não ser nos setores isolados e pacificados da cidade. Porque as pessoas sentem saudades da época em que só as comunidades necessitavam ser pacificadas. Aliás, as comunidades mais miseráveis nem de longe lembram as construções precárias do início do século XXI. Não constroem mais barracos de madeira... porque não há mais madeira. O conglomerado de barracos que se equilibram precariamente nos morros e nas beiras dos rios poluídos é feito de plástico. Milhões de garrafas Pet são recolhidas pelos proletariados para construção de casas, que mais parecem ninhos de bicho.

            Apenas a Zona Sul, centro de Niterói e algumas faixas litorâneas mais isoladas, possuem locais dignos de moradia. O próprio centro do Rio está sofrendo reformas, mas ao invés de construírem tudo de novo, os prédios tornaram-se híbridos. Os andares mais baixos, próximos das ruas onde existe podridão e crime, ainda são de concreto. Ao passo que enxertada em seus topos, ergue-se nova arquitetura, futurista, em estilo Art Decô.

            O relógio da Central do Brasil, por ser um marco na paisagem de outrora, foi preservado e erguido a dez andares, podendo ser visto ainda por grande parte da cidade. Mas a obra inacabada por falta de verbas e dinheiro desviado pela corrupção, deixa à mostra, cinco andares abaixo do topo, um inapropriado esqueleto de ferro.

            A Praça Mauá, mais do que nunca, é um antro de prostituição e jogatina. Ao nível das ruas de asfalto trincado e paralelepípedos assentados de forma irregular, proliferam bordéis e cassinos ilegais. A cada esquina, é possível encontrar uma ou mais mulheres de seios à mostra, procurando por clientes que possam lhe render alguns trocados. Legiões de viciados em crack ocupam as vielas laterais e mendigos disputam o dinheiro dos transeuntes.

            Ainda assim, alguns bares de luxo sobrevivem neste local, flores brotando do chão de esterco. Um em especial, o Cybercafé, oferece aos clientes desde bebida e prostitutas de luxo, a máquinas holográficas de apostas. É exatamente neste local que encontraremos dois amigos muito próximos de longa data.

            _ Vai, branquinho! Tem de ser você! _ grita Lúcio muito eufórico, diante de um holograma de corrida de cavalos.

            _ Já ganhou quanto? _ pergunta Heitor, por trás de seus ombros.

            _ Nada ainda! _ responde Lúcio. _ Só avaliando as probabilidades.

            _ Olha só! Acho que ele vai vencer!

            _ IUHUUU! _ comemora Lúcio, ao ver seu cavalo escolhido alcançar o primeiro lugar na linha de chegada.

            _ A máquina vai liberar cinco créditos em dinheiro eletrônico no seu cartão _ profere o caça-níqueis.

            _ Só isso?! _ reclama Heitor decepcionado. Mediante a vibração do amigo, ele esperava valores mais altos.

            _ Apenas checando! _ explica Lúcio, enquanto faz outra aposta nos cavalos e digita novos números, agora valores exageradamente altos.

            _ Vai apostar tudo isso?! _ critica Heitor. _ Você é louco!

            _ Sim! Duzentas unidades de dinheiro eletrônico no cavalo marrom! Hora do show!

            _ Não quero nem ver você perdendo isso tudo! _ observa Heitor, enquanto se dirige à mesa para pedir uma bebida. _ Vou tomar uma Crist’all!

            _ Fuja, homem de pouca fé! _ escarnece Lúcio.

            Quando Heitor se acomoda em uma cadeira e toca a tampa da mesa circular, um retângulo de luz se projeta à sua frente, mostrando um menu que interage com seus óculos de realidade aumentada. Ele aciona a tecla virtual que chama o garçom, enquanto o mesmo lhe envia o cardápio sonoro em blue tooth:

            “Bom dia, senhor. Solicite seu pedido. Refeição, tira-gosto, bebida...”

            _ Bebida! _ responde Heitor mal a máquina mostrou as opções.

            “Chopp sintético, aguardente, sidra, anis...

            _ Avançar! _ exclama Heitor, meio impaciente e nervoso.

            “Pau-Pereira, licor, cerveja...”

            _ CERVEJA! _ conclui Heitor.

            Enquanto isso, Lúcio lhe sorri de longe, mostrando o sinal do “V” de vitória.

PROPAGANDA:

            Quem não gostaria de assistir a um espetáculo com Elvis Presley e Renato Russo; ou então Beatles e Morrissey? Quem sabe até Mozart e Pavarotti? Isto já é uma realidade. Visite o Holoteatro Municipal, que será reinaugurado no próximo fim de semana (13/03/2015). Acesse o site e vote nas combinações de sua preferência. A mais votada se transformará em espetáculo. Totalmente interativo. Presente e passado ao seu alcance com o mais moderno em inteligência artificial.

            Enquanto sorve sua Crist’all, Heitor percebe que Lúcio mostra mais uma vez o sinal da vitória.

REPORTAGEM:

            _ Nesta madrugada, vários museus em todo o país forma vítimas de furtos no que parece ser uma ação coordenada! _ declara a repórter da Rede Zigurate. _ As autoridades não quiseram revelar mais detalhes, porém o grupo FLT (Frente de Libertação da Terra) enviou gravações onde assume a responsabilidade. Dos itens desaparecidos, a maioria são armas manuais que já não são usadas há mais de dez anos!

            O outdoor de led mostra um rosto na penumbra. É Joshua:

            _ Somos a Frente de Libertação da Terra! _ declara o ecoterrorista. _ Estamos de posse de poderosas armas... armas de verdade! Porque defendemos nosso planeta. Acreditamos que a Amazônia é um patrimônio mundial, mas não permitiremos que caia em mãos ainda mais ávidas de poder! Por isso não usaremos as costumeiras armas não letais. Inundaremos com sangue dos invasores o chão da pequena floresta!

            _ Temos que concordar que as autoridades levarão desvantagem contra esses perigosos ecoterroristas! _ declara a repórter. _ Desde 2010 as armas de fogo se tornaram peças de museu, sendo substituídas gradativamente por armas não letais! O que?! Ah, sim! Desculpem! Armas menos letais! _ corrige-se a repórter, mediante um sinal do contra-regra. _ Armas nunca deixam de ser letais!

            Enquanto Lúcio comemora mais uma vitória, O dono do bar quase arranca da própria cabeça os poucos cabelos que lhe restam. Nisso, o garçom se aproxima de Heitor com outra cerveja e, discretamente lhe fala ao ouvido:

            _ O chefe tá puto! Melhor tirar seu amigo daqui... para o bem dele!

            _ Captei a mensagem! _ responde Heitor, enquanto desce a tulipa de cerveja em uma golada só. _ Quanto devo?

            _ Esta é por conta da casa! Só desapareçam daqui!

 

REPORTAGEM:

            _ Os extremistas que ameaçam o Governo seguem uma estranha religião chamada Testemunhas de Gaia! Eles literalmente adoram o planeta e preferem ver um homem morto a um pinguim!

            Já do lado de fora do estabelecimento, Lúcio assiste ao final da reportagem exibida no outdoor e se irrita:

            _ Pinguim... pinguim! As pessoas os acham tão fofinhos! Mas sabe o que um pinguim em sã consciência faz com seu companheiro, Heitor?

            _ Não tenho a mínima ideia!

            _ Ele empurra o outro de cima da geleira, mar adentro, para checar se há algum predador na água turva! Se a barra estiver limpa, não houver sangue, só então ele mergulha também! Assustador, não?!

            _ Sim! Assustador!

            Uma paisagem desolada se desfralda no campo de visão dos amigos, enquanto caminham e conversam. O contraste entre o luxo e a pobreza é gritante. Ao passarem em uma esquina, são atraídos pela visão deprimente de um mendigo sem uma das pernas. Sentado no chão imundo, ele suplica com uma das mãos erguidas:

            _ Uma esmolinha, pelo amor de Deus!

            Lúcio se volta para contemplá-lo mais de perto.

            _ Uma esmolinha, meu bom homem! _ implora o miserável, estendendo uma máquina de débito automático em sua direção.

            Lúcio passa seu cartão e deposita a assombrosa quantia de quinhentos créditos em dinheiro eletrônico (ou quinhentos DEs, como são chamados usualmente os valores financeiros) na conta do mendigo.

            Ao constatar a quantia, o homem sai pulando literalmente numa perna só, gritando a plenos pulmões:

            _ A natureza lhe abençoe! A NATUREZA LHE ABENÇOE!

            _ Humpf! Mais um adepto dos Testemunhas de Gaia! _ resmunga Lúcio.

Heitor concorda, mas não é isto o que realmente lhe chama a atenção, e sim o fato de seu amigo estar esbanjando tanto dinheiro. Após uma breve pausa, indaga:

 _ Tem ganho muito dinheiro?

            _ Claro! _ responde Lúcio! _ Ganhei cinquenta mil só agora! Pra você ter uma ideia, não leciono mais na faculdade. Nada de biofísica, nem cibernética... larguei o emprego de vez!

            _ Largou um emprego público?!!!

            O espanto e indignação de Heitor são palpáveis.

            _ Sim! Só uso a poderosa matemática nas apostas!

            _ Que você desenvolveu um sistema eficaz para burlar o sistema, eu acredito! _ exclama Heitor. _Mas aconselho a distribuir o prejuízo por outras casas!

            _ Por que?

_ Pode se dar mal assim! _ aconselha Heitor, enquanto coloca a mão dentro de seu casaco buscando algo.

_ O que tem aí? _ pergunta Lúcio.

Heitor inicialmente nada responde. Então, do bolso interno de sua jaqueta, ele retira um maço de cigarros de maconha Bob Marley. Depois põe um baseado na boca e oferece outro ao amigo:

_ Vai um aí?

_ Não, obrigado! _ agradece Lúcio. _ Estou tentando parar de fumar!

Ambos são grandes amigos e, enquanto passeiam pela paisagem meio desolada, Lúcio observa Heitor inalar a fumaça daquela maconha hidropônica, sentindo uma ponta de inveja por ele se satisfazer com tão pouco.

_ Sabe?! _ declara Heitor sem nenhuma preocupação verdadeira. _ É perigoso andar com tanto DE no cartão por aí!

_ E o que sugere? _ responde Lúcio com olhar desafiador.

_ Na verdade já fiz uma coisa...

_ Não vai me dizer que se deixou levar por aquelas propagandas! _ exclama Lúcio meio exasperado, cortando a fala do amigo.

_ Ah! O próprio Silvio Santos tem um! _ justifica Heitor, meio envergonhado. _ E não se esqueça do Windows!

_ Já se esqueceu do caos que foi ano passado?!

 FLASH BACK:

Repórter da Rede Zigurate:

“A OM (Organização Mundial) decretou a obrigatoriedade do implante do chip cerebral!”

Presidente da OM:

            “Este é o início de uma nova era! Uma era onde qualquer cidadão estará protegido de sequestros, de assaltos; onde o Estado será guardião de cada indivíduo! Esta é a mais fantástica demonstração da verdadeira democracia!”

Repórter da Rede Neocristã:

            “Mal esta declaração foi feita, os protestos se espalharam por todo o mundo, como incêndios nas antigas florestas! Revoltadas, as pessoas depredaram prédios públicos e particulares e, vândalos ou não, os manifestantes usavam máscaras do personagem ‘V de Vingança’ para exprimir sua indignação!”

 

            Voltando ao presente...

Lúcio sorri, lembrando uma cena célebre daquela época; um manifestante gordo jogando coquetel molotov  num carro de polícia, gritando:

_ Não vão me lobotomizar, seus viados!

_ Foram épocas difíceis! _ conclui Heitor.

_ No final, como a população não aceitou pacificamente a ideia, o decreto de obrigatoriedade ficou restrito apenas a quem ingressasse nas forças armadas! _ observa Lúcio.

GAIA 2030

 

 

 

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